(Texto escrito por Carla Furlan, a partir do
livro "A Vida Pitoresca de Cornélio Pires", de Joffre Martins
Veiga) (Vídeo do Youtube)
No dia
13 de julho de 1884, num frio domingo, nasceu Cornélio Pires, filho de Raimundo
Pires e Ana Joaquina de Campos, décimo quarto neto do chefe guaianá Piquerobi,
sétimo neto de Brás Cubas, sétimo neto de Pedro Taques, décimo sétimo neto de
Martim Leme, décimo terceiro neto do velho Tibiriçá, oitavo neto do Governador
Álvares Cabral, que por sua vez era sobrinho do descobridor do Brasil. O menino
veio ao mundo na chácara de sua tia Nhá Bé, situada no bairro do Sapopemba,
onde moravam os pais do recém-nascido.
Neste
recanto bucólico, onde o rio Tietê, tranquilo e na época carregado de peixes,
emoldura a paisagem, Cornélio Pires passou a infância.
O
lendário rio Tietê foi seu companheiro, seu confidente, seu passatempo
preferido.
“Por que não hei de amá-lo? – Se esse rio
É o amigo dos tempos de criança,
Que meu primeiro pranto repetiu,
Levando-o em eco na corrente mansa!
Foi ele, esse Tietê, quem mais me viu
Cheio de sonhos, cheio de esperanças...
E muita vez comigo repartiu
Sua calma ideal, sua bonança.
De dia, ele a passar todo escorreito,
Era parceiro de correria.
Eu pela margem e ele pelo leito.
Ao luar, pela noite, ele passava
E estrelado de espumas se estendia
E tal qual eu, tranquilo repousava.”
À
noite, Cornélio se reunia aos primos e irmãos para ouvir histórias de fadas, de
almas do outro mundo e de fantasmas, contadas pela velha Serafina. Mesmo quando
o sono já o dominava, Cornélio não tinha coragem de ir para a cama sozinho.
Esforçava-se por não adormecer, até que os irmãos mais velhos fossem deitar. Aí
ele criava coragem, entrava no quarto, rezava à pressa e dormia.
A
vocação artística de Cornélio se manifestou quando ele ainda era criança e, em
companhia de outros meninos improvisou um circo na casa de Faé Vieira. O
espetáculo seria em benefício da Santa Casa de Misericórdia de Tietê. As
pessoas importantes da cidade não deixaram de ir vê-lo nos papéis de cavalo e
depois, padre. Neste pequeno circo sentiu, pela primeira vez, a emoção de
receber aplausos.
Em
1896, após a mudança de seus pais, do sítio para a cidade, Cornélio continuava
a passar boa parte de seu tempo no sítio da madrinha, onde adorava caçar
passarinhos.
Sua
alfabetização foi iniciada por sua mãe e, mais tarde teve como mestres Antônio
Casimiro e Herculano Silva. Com a instalação do grupo escolar de Tietê,
Cornélio foi matriculado no primeiro ano. Mas era um aluno rebelde. Como fazer
um garoto acostumado passar o dia correndo num sítio, se contentar em ficar
sentado à carteira olhando o quadro negro? Em decorrência às tantas coisas que
ele aprontava foi expulso da escola no terceiro ano.
Mais
uma vez tendo que ter aulas particulares, seus pais descobriram no dinamarquês
Alexandre Hummel, o professor ideal para Cornélio, ainda assim este sofreu para
ensinar o menino. A simpatia de Cornélio se deu finalmente com seu próximo
professor: Francisco de Assis Madeira, o único que o compreendia e tolerava
suas traquinagens.
Já
rapaz foi trabalhar como tipógrafo no jornal “O Tietê”, trabalho que lhe
despertou a paixão pela poesia.
Aos
quinze anos abandonou a tipografia e daí por diante, ao longo de sua vida teve
vários empregos como caixeiro, agente de negócios, rábula, revisor, professor
de ginástica, oleiro, plantador de algodão, comerciante, industrial e outros,
sempre ganhando muito pouco.
Ainda
bem rapaz começou a se interessar pelo folclore e pela vida rústica dos
caipiras, passou a estudar então, as danças, os mutirões, as cantigas, os
hábitos e costumes do caboclo paulista.
Após
dois anos vividos em Laranjal Paulista , estando de volta a
Tietê, Cornélio sonhava com a possibilidade de ir a São Paulo. Enquanto criava
coragem para falar com seu pai, passava os dias na chácara da tia Nhá Bé,
pescando ou ajudando o tio Vicente na Olaria que funcionava nas terras da
madrinha.
Em
1901, Cornélio deixou Tietê, disposto a estudar em São Paulo. Lá chegando fixou-se na
casa de Dona Belisária, irmã de sua mãe e viúva do escritor Júlio Ribeiro,
autor do discutido romance naturalista “A Carne”. A casa de Belisária era uma
espécie de pensão onde se podiam encontrar os mais variados tipos de pessoas,
figuras que se tornariam expressivas na sociedade paulistana, mas que, naquela
época, não passavam de estudantes. Estas amizades animaram Cornélio a se
preparar para os exames vestibulares de Farmácia. Porém, o jovem não foi
aprovado, uma vez que tinha a letra tão péssima que, nem os professores, nem
ele próprio, conseguiram entender o que havia escrito.
Logo
após a reprovação nas provas para a Faculdade de Farmácia, Cornélio foi levado
por um amigo a trabalhar como repórter em “O Comércio de São Paulo”. Para isto,
Cornélio teve que começar a fazer caligrafia, a fim de melhorar sua letra e
conseguir se manter no emprego.
Ao
eclodir a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, Cornélio postou-se na estação
da Central do Brasil e ali ficou, a fim de colher depoimentos dos viajantes que
chegavam fugidos do Rio de Janeiro. Mesmo sem sair de São Paulo, Cornélio
conseguiu registrar todos os momentos do movimento, dando as notícias em
primeira mão.
Apesar
destes feitos, o salário recebido pelo trabalho no jornal era muito pequeno e,
desiludido com isso, Cornélio caiu na boemia. Era assíduo freqüentador dos
pontos de encontro da boemia, e foi nesse período que conheceu Monteiro Lobato.
Foi nesta roda de boêmios que Cornélio começou a contar seus causos caipiras, e
começou a ser conhecido por isso.
Em fins
de 1908, Cornélio esteve em Tietê, visitando a família, apaixonou-se
perdidamente por uma moça, filha de um alfaiate da cidade, que por imposição de
seu pai, pouco saía de casa. Cornélio passava muito tempo na barbearia de
Miguel Guarnieri, que se situava defronte à casa da moça.
Belinha,
como ele a chamava (a fim de proteger o verdadeiro nome da amada), parecia
corresponder à paixão, uma vez que, sempre que possível, aparecia à janela, e
os dois trocavam rápidos olhares. Porém, nunca se concretizou o namoro, já que
a família da moça a trancafiou em casa para que os dois não se aproximassem. O
máximo de proximidade que tiveram foi numa procissão, episódio narrado por
Cornélio em sua poesia “Um Beijo”:
"Um dia eu vi meu bem, junto do altar,
chegar-se ao Cristo nu crucificado
e aos pés frios beijos dar...
Em isso vendo, eu fui muito apressado
e sobre os pés de Deus, ali, curvado,
com a boca colada no lugar
Em que meu bem havia então beijado
os pés do Cristo nu pus-me a beijar,
cheio de afeto e cheio de respeito.
Depois eu me retirei satisfeito
por me ter parecido aquele ensejo...
Pensaram que eu beijei os pés do Cristo
as pessoas que ali tinham me visto...
Mas não beijei os pés... Beijei o beijo!"
Cornélio
tornou-se professor de Educação Física, por indicação de um amigo, na cidade de
Botucatu. As aulas eram animadas e Cornélio se tornou querido por todos os
alunos. A vida pacata da cidade de Botucatu o fez se dedicar novamente à sua
poesia. Constantemente estava a conversar com os caboclos, observando sua
pronúncia, jeito e atitudes.
O contato
direto, a convivência quase contínua com o homem do campo, desde o nascimento
até a mocidade, forneceram-lhe primoroso material lingüístico e poético para
suas primeiras produções no gênero. Andava sempre com um caderninho de
anotações, no qual anotava discretamente tudo o que se passava ao seu redor e
escrevia seus poemas.
No
início de 1910, Cornélio vai até São Paulo visitar seu primo Amadeu Amaral, e
leva consigo uma de suas poesias intitulada “Ideal de Caboclo”. O primo
incentiva Cornélio a investir neste ramo dizendo ser este ainda inexplorado.
“Ai, seu moço, eu só
quiria
p'ra minha felicidade,
um bão fandango por dia,
e uma pala de qualidade.
Pórva, espingarda e
cutia,
um facão fala-verdade,
e úa viola de harmonia
p'ra chorá minha sódade.
Um rancho na bêra
d'água,
vára-de-anzó, pôca
mágua,
pinga bôa e bão café...
Fumo forte de sobejo...
P'ra compretá meu
desejo,
cavallo bão - e muié...”
Um
pouco depois desta visita, Amadeu Amaral recebeu um exemplar da primeira obra
de Cornélio Pires, o livro “Musa Caipira”, editado em quinze dias pela Livraria
Magalhães e lançado em fevereiro de 1910.
Durante
o período político de 1910, defendeu seriamente o candidato Ruy Barbosa, que
perdeu a eleição para Hermes da Fonseca. Devido aos discursos contrários ao
governo feitos em alto e bom som, para quem quisesse ouvir, foi demitido da
escola onde lecionava Educação Física. Sem dinheiro para se manter na cidade de
Botucatu, muda-se para Piracicaba, onde passa a prestar pequenos serviços (como
escrita de cartas) para comerciantes, sapateiros, etc. Mais tarde passou a
trabalhar com rábula (advogado sem formação) então, sua vida financeira começou
a melhorar e Cornélio voltou a viver de forma boêmia.
Em
1911, em Tietê, se apresentou como caipira humorista em uma representação
teatral e, somente em 1914, passou a realizar mais espetáculos deste tipo, aos
quais chamava de “Conferências Caipiras” e com as quais se apresentou em boa
parte das cidades paulistas.
Essas
excursões artísticas lhe trouxeram dinheiro e fama.
Nesta
época sua produção literária era imensa e quase todas as revistas de projeção
publicavam seus trabalhos.
Em
janeiro de 1923, comprou uma câmera filmadora de um amigo alemão, e
entusiasmado com essa aquisição, uniu-se ao cinegrafista Flamínio de Campos
Gatti e empreendeu uma viagem pelo nordeste do Brasil. As imagens captadas
durante esta viagem após edição se transformaram no filme “Brasil Pitoresco”. O
negativo da fita foi entregue à Universidade de São Paulo e as cópias foram
exibidas por todo o território nacional.
Em 1926
funda o periódico “O Saci” e assim a imprensa brasileira passa a tomar maior
conhecimento de seus trabalhos literários.
Conforme
passou a conhecer artistas matutos que se apresentavam em feiras e pequenas
festas, Cornélio organizou a “Turma Caipira Cornélio Pires”. Em 1929, bancou a
gravação de discos destas duplas com seu próprio dinheiro, e tornou-se, assim,
o primeiro a gravar discos sertanejos de forma independente, no Brasil. A
gravadora Columbia chegou a fazer uma série especial com selos vermelhos para
os discos de Cornélio, lhe dando grande visibilidade, uma vez que todos os
discos produzidos pela gravadora até então, recebiam selos azuis.
O
interesse do poeta por essa atividade foi tão grande que ele chegou a gravar
cerca de 110 discos, entre os quais figuravam os de anedotas, histórias, moda
de viola, piadas, etc.
Certo
dia, na segunda metade da década de 40, Cornélio conheceu o jovem Romeu
Rodrigues, que se dedicava à ventriloquia.
Cornélio
mandou fazer dois bonecos e fundou o Teatro Ambulante Gratuito “Cornélio
Pires”. A ideia era levar a todos os recantos do Brasil espetáculos variados,
sob o patrocínio de firmas comerciais paulistas.
Estas
apresentações consistiram em verdadeiros êxitos populares.
Em
1946, o Teatro Ambulante iniciou sua viagem pelo Interior, levando alegria e
diversão a inúmeros brasileiros que nunca tinham visto cinema. Nas cidades
grandes a assistência ultrapassava o número de dez mil pessoas.
O
sucesso das apresentações fez com que a Companhia Antarctica Paulista
contratasse os serviços de Cornélio Pires. Assim, ele se tornou propagandista
exclusivo da marca, e recebeu da empresa todas as condições financeiras e
materiais, para melhor executar o trabalho.
Em
1947, Cornélio resolve fixar residência em Tietê, uma vez que nunca antes
tivera domicílio fixo (vivia em hotéis). Em 25 de julho de 1951, a Câmara Municipal de
Tietê, em homenagem ao escritor, cedeu um pequeno lote de terreno situado à
margem direita do famoso rio Tietê, onde ele construiu no ano seguinte modesta
vivenda.
Saia da
cidade apenas para dar espetáculos em outros municípios. Constantemente era
visto no jardim principal de Tietê a conversar com velhos amigos.
Sempre
preocupado com os outros, comprou, com o dinheiro pago pela Antarctica, uma
pequena chácara perto da cidade, a fim de construir um lar aos pequenos
abandonados. Surgiu assim a Granja de Jesus (Casa dos Meninos), cuja conclusão
o escritor não pôde ver.
Em
outubro de 1957, já bastante debilitado pelo câncer na garganta, Cornélio
escreveu: “Em qualquer tempo que eu deixe este corpo, que tanto me serviu para
minha estada na terra para me consertar um pouco, desejo que ele seja sepultado
descalço e de pijama. Não por vaidade, mas que se aproveitem (alguns pobres)
das roupas e calçados que usei. Nisso não há caridade. Como não posso usá-lo,
os dou...”
Com o
agravamento da doença, Cornélio foi internado no Hospital das clínicas de São
Paulo, onde faleceu às 2h30, do dia 17 de fevereiro de 1958, uma segunda-feira
de carnaval. No mesmo dia de sua morte, seu corpo foi transladado para Tietê,
sendo sepultado no cemitério local, como era de sua vontade.
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