(Texto extraído do livro "Cronologia Tieteense", de Benedicto Pires de Almeida)
Fernando Álvares Lobo
que, mais tarde, adotou o pseudônimo de Marcelo Tupinambá, nasceu em Tietê, em
30 de maio de 1889, tendo como progenitores o maestro Eduardo Lobo, um dos
primeiros organizadores de bandas de música no interior do Estado, e da Profª
Maria Rodrigues de Azevedo.
Foi batizado na Igreja de Santa
Ifigênia, em São Paulo.
Sua educação primária foi feita
concomitantemente com a da música, para a qual mostrava grande pendor.
Seu primeiro professor foi Jucá Floriano,
que o guiou com interesse no ensino do violino, e foi este seu instrumento
inicial.
No ginásio por onde passou, em Pouso Alegre, teve oportunidade de travar conhecimento com o piano.
Terminado o ginásio, conseguiu
ingressar na Escola Politécnica de São Paulo, e nesse intervalo procurou
apresentar as suas primeiras composições.
Em 1914, musicou a revista teatral São
Paulo futuro, libreto de Danton Vampré, que alcançou grande sucesso,
datando daí o início de uma série de composições, editadas de 1916 a 1924, período em que
apareceram Viola cantadeira, Que sodade, Marícota sai da chuva, Tristeza de
caboclo (gravada em Paris pelo Barítono Crabé), Nhá Moça, O matuto, Xodó
e muitas outras que, além da grande aceitação, foram apontadas por Mário de
Andrade, Renato de Almeida e outros como os primeiros movimentos nativistas.
Formado em engenharia em 1916, foi
para Barretos onde, dividindo terras no sertão, teve ocasião de ouvir melodias
admiráveis de nossa gente cabocla e fixá-las conforme sentia, divulgando-as
pelo Brasil.
Porém, depois de formado, decidiu
não mais ganhar dinheiro com música, apenas com os trabalhos de Engenharia.
Casou-se em Barretos com D. Irene
Menezes, indo morar, em seguida, na cidade de Olímpia. Adquiriu aí insidiosa
moléstia de olhos, que o levou a São Paulo, de volta, a fim de ver se aparava
esse golpe. Teve que abandonar a profissão de engenheiro, pois tal moléstia
tornara-o quase cego.
Em 1924 iniciou uma série de
composições inspiradas nos versos de nossos poetas, procurando seguir o exemplo
patriótico de Alberto Nepomuceno, coincidindo essa iniciativa com o movimento
literário de São Paulo, chamado "Semana de Arte Moderna".
A seguir, apresentou-se ao público
paulistano no antigo Salão Germânia, onde obteve franco apoio, não só do
público, como especialmente da imprensa. Continuou apresentando esses trabalhos
nas nossas cidades e em várias capitais do Brasil, contando com mais de 250
canções impressas, entre as quais algumas de grande popularidade como a Canção
da guitarra, O Cigano e Versos Escritos na Areia.
Sempre com o espírito de fazer arte
nacional, fixou-se o mais possível na música, esse "quê" imponderável
de nossa terra, compondo uma série de músicas para violino com acompanhamento
ao piano, outra para coral, uma suíte de cordas, vários bailados inspirados em
lendas e motivos nacionais, várias operetas e músicas de caráter religioso.
Dedicou-se, então, em virtude do seu
inquebrantável espírito, inteiramente à música, compondo com muito mais
intensidade, interesse e observação na escolha dos temas, aqueles que melhor se
ajustassem aos seus pensamentos e que maior concordância tivessem com a nossa
terra, chegando a um volume de composições de mais ou menos 1.000. Não estudou
composição com professores, mas a leitura de trabalhos de mestres, a análise
dos seus processos, aliadas à sua grande vontade e inclinação, guiaram-no para
conseguir o que tanto ansiava.
Mais tarde, procurou dar um caráter
de maior responsabilidade aos seus trabalhos, tendo iniciado, entre outros, uma
composição coral sinfônica intitulada Pean, em comemoração ao 4° centenário da
fundação de São Paulo e em homenagem aos grandes vultos da terra bandeirante,
cuja linha de execução imaginava assim: "Primeiro comporei um tema
expressando a nossa terra virgem como era com os seus aborígenes livres,
gozando desta imensidão e dos matizes que os pássaros emprestavam. Este tema
seria então caldeado com temas portugueses, dando a idéia de introdução ou
invasão dos portugueses nesta terra. Daí sairia, então, um tema vigoroso e
varonil que representaria a fase dos bandeirantes, que além de marcante seria
insidiosa, dando a impressão das penetrações das bandeiras e, por fim, uma
música característica de São Paulo moderno poderia enfeixar os diversos temas
aposentados".
Antes, porém, que
pudesse passar para a pauta o Pean, vitimou-o um derrame cerebral que o
impossibilitou de qualquer esforço ou emoção. Quase refeito desse derrame, que
ocorreu mais ou menos em novembro de 1952, outro sobreveio em 18 de junho de
1953, e, após 16 dias, entrega a alma ao Criador, em 4 de julho de 1953.
Em 1947, fez-se na
Assembléia Legislativa Estadual um movimento para a doação de uma casa a
Marcelo Tupinambá, em virtude de sua situação de pobreza e doença.
Os tieteenses apoiaram
essa campanha, a Prefeitura promoveu a redação de um memorial que foi assinado
pelas autoridades, professores e pela mocidade da Escola Normal, documento que
foi encaminhado ao Deputado Motta Bicudo, patrocinador e autor da proposição. A
idéia teve o beneplácito do eminente Dr. Ademar Pereira de Barros, governador
recém-eleito do Estado, e Marcelo, até desaparecer desta vida, residiu em casa
que lhe fora doada pelo governo estadual.
Ficou Marcelo muito grato aos
tieteenses que o acompanharam naquele episódio, e ao Sr. Benedicto Pires de
Almeida, que então estava no exercício do cargo de Prefeito de Tietê, em 1947,
dirigiu a carta cujos termos são desconhecidos da população tieteense e está
assim redigida:
São Paulo, 25 de fevereiro de 1948
Ilmo. Sr. Benedicto Pires de Almeida
DD. Secretário da Câmara Municipal
de Tietê
É com prazer que me dirijo a V. Sa.
para dizer do meu orgulho em ter nascido nessa cidade de Tietê, onde existem
pessoas de coração tão elevado e cujo espírito também se acha voltado para as
questões artísticas.
O interesse pelo pouco de arte que durante a minha vida
procurei fazer, demonstrado pelos meus conterrâneos e por V. Sá. quando da sua
gestão como prefeito dessa cidade, e corporificado pelas assinaturas apostas ao
memorial enviado ao nosso legislativo, fortalecendo assim a idéia de que fosse
adquirida uma casa para minha moradia, aqui em São Paulo , prestigiou
muitíssimo essa iniciativa, derramando um quê de simpatia sobre o caso, o que,
sem dúvida, favoreceu a sua aprovação.
Quero, por meio do que aqui vai
descrito, testemunhar os meus agradecimentos a V. Sas. e a todos os
conterrâneos que pediram por mim na Assembléia, e colocar-me à disposição de
tão distinto amigo.
Fernando Lobo (Marcelo Tupinambá).
IMPRESSÕES SOBRE TUPINAMBÁ
Inúmeros foram os
críticos musicais de nomeada que emitiram suas opiniões sobre a música de
Marcelo
Tupinambá.
Tupinambá.
Dentre eles destacamos
alguns: Caldeira Filho, crítico d' O Estado de S. Paulo por mais de 30
anos, em cuja obra Aventura da Música assim afirma sobre a série Assombração:
"Informação prévia sobre a
originalidade da obra, plano da seriação e argumento literário poderia ter sido
comunicada ao público antecipadamente pela imprensa. Certamente o dobro do
número de ouvintes teria apreciado essa obra importante de Marcelo Tupinambá.
Como sempre, entretanto, guardou-se segredo e só na hora do concerto é que se
tomou conhecimento dela. Injustiça dolorosa, porquanto, além do interesse do
público há também o do autor. Essa série é tão importante na obra de Tupinambá
quanto uma nova produção de Camargo Guarnieri. Não há exagero no que dizemos,
porque Marcelo Tupinambá é um nome nacional em certo gênero de música,
inconfundível, original, chamada mesmo a "música de Tupinambá",
objeto de importante estudo de Mário de Andrade. A insistência nas peças corais
revela notável evolução, digna de estudo, tanto técnica, quanto artística.
Seria justo, portanto, que maior divulgação prévia preparasse o público. Mas
ante tais coisas resta apenas sonhar. Bem significativo parece o último trecho
da série "Cabeça de papel", em que a criança sonha, sonha Tupinambá
com uma criação que seja a síntese expressiva da música brasileira, e sonhamos
todos com mais um pouco de solidariedade, compreensão e simpatia
humanas..."
Afonso Schmidt, o primoroso prosador
que escrevia com o coração, em doce crônica de 1946, inserida em seu livro São
Paulo de meus amores, consagrou a Marcelo Tupinambá encantadora página:
"Há muito não ouço falar em Marcelo Tupinambá. Eu
sempre o encontrava aí pelo triângulo, magro, míope, distraído. Era preciso
correr e colocar-me diante dos seus olhos para que ele me reconhecesse. Depois,
deixei de vê-lo. Com certeza, o músico andava na luta pela vida, com armas
desiguais, pois num tempo em que muitos vivem das mãos e dos pés, ele, o
sonhador, queria viver do coração. Um dia contaram-me que homens de boa vontade
lhe tinham arranjado um emprego, não sei onde. Nas horas vagas, ele se recolhia
entre as quatro paredes amigas do seu gabinete do trabalho. Nesse gabinete, o
piano. Na estante do piano, folhas de papel com pauta de cinco linhas, onde ele
engaiolava, depressa, as notas que fugiam do teclado.
É preciso lembrar Marcelo Tupinambá hoje, sempre. Ele recorda
aquela lenda hindu que dá bem a idéia da ausência de sentimento de posse, esse
sentimento tão forte entre os ocidentais. Certa vez um Cheia, para alegrar o
seu Guru, levou-lhe de presente dois puríssimos diamantes. Chegando à
localidade onde morava o mestre, não teve dificuldades em encontrá-lo. Viu-o
logo à beira do rio, sentado numa pedra a pique sobre a água profunda.
Meditava. Sentia-se enlevado num pensamento. Quando o visitante o saudou e
estendeu a mão em cuja cavidade ardiam as duas jóias, uma delas resvalou e caiu
no poço. O mestre recebeu um diamante e o discípulo correu a salvar o outro. Mas
não sabia ao certo o lugar em que ele havia mergulhado. Então o velho, para
indicar-lhe com precisão o ponto em que sumira o primeiro diamante, atirou o
segundo ao rio, dizendo:
— Foi ali que ele caiu.
Marcelo Tupinambá é assim. Sua alma é um tesouro musical e
ele, sem se preocupar, vai atirando por aí riquezas de harmonias. É o criador e
o exumador de motivos brasileiros que surgem e se perdem no coração das
"três raças tristes", nessa vida afanosa que levamos. Tem alcançado
os maiores triunfos... Fora do Brasil. Há anos, grande compositor que por aqui
passou disse aos jornalistas que o entrevistaram: "Conheço de nome a
Marcelo Tupinambá. Já ouvi uma de suas canções, em língua alemã, cantada por
Chiapeline".
O Prof. Villa-Lobos, que apresentou
algumas de suas composições em concertos realizados na Europa, foi mais longe.
Pouco antes, um crítico havia afirmado que certo compositor moderno, tendo
vivido alguns anos no Rio de Janeiro, se inspirava demais na obra de Marcelo
Tupinambá. Interrogado a respeito, o Prof. Villa-Lobos teve estas palavras:
— Mais do que isso. Ele é o editor de Marcelo Tupinambá. O mundo conhece a Marcelo Tupinambá... Com outro nome...
E que fez Marcelo Tupinambá? Vai atirando à água, um a um,
como seixos desvaliosos, os puríssimos diamantes de sua inspiração."
O Prof. Silveira Bueno,
em artigo para A Gazeta, a respeito de Marcelo Tupinambá, por ocasião do
seu desaparecimento, escreveu:
"Foi este o Schubert brasileiro, o verdadeiro criador
dos lieds de São Paulo. De parceria com Danton Vampré entrou pelo teatro
adentro, compôs fina música de câmara, peças para piano e orquestra, deixando
inacabada uma ópera de fundo religioso. Famoso foi o seu fox-trote O cigano,
vergonhosamente roubado e gravado na Argentina. A sua alma, porém, toda se
expandia quando tinha diante de si a letra de um poeta inspirado. Quem não se
recordará de Eu tenho adoração pelos meus olhos, de Cleómenes Campos; da
Canção triste, de Paulo Gonçalves?
Quantos apaixonados infelizes não sentiram toda a sua
pungente tristeza quando puderam cantar, baixinho, com a música de Tupinambá,
aquela estrofe enternecedora da canção:
Num gesto angelino de bênção, Namorados que o poeta
entristeceu, rezam nomes, talvez, de almas que neles pensam... Todos amaram,
por certo... Menos eu!"
Assim encerra o eminente mestre
Silveira Bueno seu depoimento: "Foi Marcelo Tupinambá o último boêmio de
São Paulo. Ninguém mais divertido, nem mais amável que ele em companhia de
amigos. O futuro não lhe merecia atenção; queria viver o momento presente,
muito embora soubesse que, de sua boêmia, lhe viria o maior- tormento de sua
vida de artista: a cegueira.
Pouco a pouco lhe fugiam os olhos. Impossibilitado de
escrever ou de ler as suas músicas, escrevia-as unicamente pelos ouvidos, pelas
pontas inspiradas de seus dedos geniais. Em companhia de Plínio Salgado foi à
Alemanha em busca da ciência alemã. O desconsolo do desengano lhe não arrefeceu
a força inspiradora; ativou-a ainda mais e tinha-se a impressão de que o
compositor queria vencer o tempo, compondo nos poucos anos que lhe restavam, o
muito que cantava em sua alma. Nunca me esqueci de uma palavra sua que me
nublou o coração: ia eu pela Rua Direita e a meu encontro vinha Marcelo
Tupinambá; passou por mim e nem sequer me cumprimentou. Fi-lo parar: — Marcelo,
já não conhece os amigos? E ele com a sua voz tão triste, respondeu:
— Oh! Silveira, não sabe que estou cego?
Abracei-o comovidamente. Sabia que ia perdendo a visão, mas
ignorava que já a tivesse perdido completamente; ele andava sozinho pelas ruas,
vindo a pé da Barra Funda, tanto conhecia a amada cidade de São Paulo. Os anos
nos distanciaram e somente as harmonias de suas canções continuaram a manter
dentro do meu afeto a sua figura carinhosa e entristecida.
Necessitaram os anjos cantores do
céu de um novo regente, de um novo compositor, pois as suas ancianíssimas
cantigas e hinos já estavam muito repetidos, desde a eternidade. E Marcelo foi
requerido por Deus para reger nas sublimidades do Paraíso as orquestras dos
coros angélicos".
No caminho da arte, a
carreira de Marcelo Tupinambá como compositor foi de uma ascendência
extraordinária. Possuindo genuína inspiração nacional, atingiu a culminância da
arte musical, como uma das expressões máximas da música brasileira.
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